Identidade: 2G-91120
Unidade: I/2º ROAuR da FEB
Integrou o 2º Contingente que zarpou do RJ no dia 22/setembro/1944
rumo a Itália durante a Segunda Guerra Mundial.
A Partida - 22 de setembro de 1944:
A volumosa e cinzenta quilha do USS General W. A. Mann cortava a água, abrindo caminho e esparramando enormes volumes espumantes para os lados dos costados do grande navio. O surdo bater dos motores, girando nas entranhas de aço, formava um pano de fundo que se misturavam às conversas, risadas e cantorias dos soldados que lotavam os passadiços repletos de equipamentos. No ar, um odor de óleo diesel, suor dos homens e tinta fresca dos veículos embarcados, tudo embalado com a paisagem azul marinho do grande oceano que se descortinava à nossa frente.
O dia estava esplêndido e o sol mostrava cada detalhe e cor da paisagem à nossa volta. Súbito e por um breve momento, toda algazarra dos homens cessou, quando a embarcação livre de suas amarras e pesadas âncoras, deslizou calmo e sereno para fora da baia da Guanabara, despedindo-se tristemente da cidade maravilhosa e do Brasil. A primeira agulhada dolorida da saudade, nossa nova companheira doravante, havia nos ferido.
Enfim, a sorte estava lançada. Depois de meses ininterruptos de treinamentos e espera, estávamos a caminho da Itália, onde a guerra prosseguia sem trégua por quase toda Europa. Regimentos de Infantaria, formando a Força Expedicionária Brasileira iria se agrupar ao 5º Exército dos Estados Unidos que já lutava no norte contra a Wehrmacht. O destino nos aguardava lá, do outro lado do mar.
Debruçado sobre o parapeito da proa, vendo a água se revoltar lá embaixo na murada, relembrei os últimos e frenéticos dias que antecederam a partida das tropas. Cada instante e ambiente foram de surpresas e novidades que foram se avolumando na memória de forma inconsciente e agora, em meio a alguma calmaria, vêm à tona.
Desde o embarque até momento de zarpar foram quatro dias vendo os carregamentos, o vai e vem de pequenas embarcações pelo porto e a contínua fila de caminhões no cais que trouxeram os suprimentos. Observei que os norte-americanos mantém uma estrutura notável a bordo. O sistema de rancho compreende três fartas refeições ao dia, com diversos tipos de pratos e de boa qualidade nos ingredientes. Não obstante, foram maldosamente criticados pelos brasileiros, que sentiram a falta do tradicional arroz e feijão. O café da manhã é um verdadeiro almoço e o pessoal não desperdiça nada. As instalações sanitárias excelentes, com água salgada disponível para banhos e água doce apenas nas pias para limpar o rosto e as mãos. E nos amplos salões, abaixo dos conveses, aglomeram-se centenas de redes que são nossas camas de dormir.
Ainda houve tempo para receber a bordo o Presidente Getúlio Vargas que fez breve discurso à tropa, endereçando palavras de estímulo e enaltecendo a importância da participação do Brasil no esforço de guerra. Nunca tinha visto o Presidente da República. Pude observá-lo num impecável terno de linho branco e chapéu tipo Panamá. À sua volta, muitos acompanhantes se apressavam em abrir-lhe caminhos.
Mas, agora, tudo ficara para trás. País, família, lar, amigos, preparativos. Dentro em breve entraríamos em combate, e enfrentar um inimigo feroz, determinado e experiente, que venderia muito caro cada espaço e tentativa de avanço do nosso Exército. Observando os homens espalhados pelo convés, imaginei quantos retornariam ao Brasil ou em que condições. E eu, como haveria de me comportar sob o fogo? Nesse ponto era melhor conter o fluxo do pensamento. Afinal, de que valia ficar matutando essas coisas?
Um leve bater no ombro, me trouxe de volta à realidade, ao atender um intendente que chamava para uma breve reunião de instrução. De novo, iríamos executar treinamento de abandono do navio.

O Atlântico Sul
25 de setembro de 1944, 5h20
Saio da cama, quero dizer da rede, rapidamente, pois quero evitar as intermináveis filas dos banheiros e do rancho. Desta forma e antes que a aglomeração se instale subo para o convés superior para respirar o ar da manhã.
Céu e água, em todos os tons de azuis que se possa imaginar. No firmamento, o branco lácteo se confunde com as nuvens, tornando o horizonte uma linha quase imperceptível. Fico hipnotizado com a quantidade de peixes voadores que nos acompanham. São tantos que por vezes parecem bandos de aves voando rentes à água. Faz calor.
Olhando para bombordo e estibordo, observo fascinado a formação de nossa flotilha. É impressionante ver aquelas proas subindo e descendo pelas vagas, espirrando golfadas imensas de água. A esquadra proporciona uma sensação de segurança que ajuda a diminuir um pouco a ansiedade. Junto ao nosso navio, um pouco atrás, o transporte USS General Meigs com o número “116” pintado na popa. Entre ele e o nosso “112” segue um cruzador pesado de 10 mil toneladas, equipado com dois hidroaviões, além de todo seu armamento antiaéreo e de longa distância. À direita e à retaguarda, outro cruzador, este da Marinha do Brasil, nos acompanha a uma distância de quatro milhas. Os sobrevoos dos aviões Vultee e Catalina da nossa Força Aérea são constantes, troando os ares com seus motores em regime de cruzeiro e flaps abaixados. Os aviões passam tão baixo que podemos ver os pilotos acenando com as mãos. Algumas horas depois, incorporou-se à formação mais dois cruzadores e vários destroyers, alguns dos quais navegavam tão à frente que mal se distinguia seus mastros.
Formamos o 2º e 3º escalão de embarques da FEB, totalizando pouco mais de 10.300 praças e quase 700 oficiais. Juntos, seguem batalhões de engenharia, reconhecimento, transmissões, saúde, além de elementos de intendência, depósito, serviços postais, justiça, hospital, correspondentes de guerra, e o pelotão de sepultamento.
Durante todo o dia há atividades na embarcação que vão desde a limpeza constante, grupos de soldados em exercícios físicos ou em palestras e a ação dos grupos de manutenção que uma belonave desse porte requer. Quando não estou em exercício, passo as horas vagas lendo, conversando e o tempo todo, suando.
Ao fim desse dia quente e abafado, antes mesmo do sol se por, o sistema de alto-falantes anunciou o toque de recolher para o interior do navio e toda a iluminação foi apagada, ficando apenas acessas luzes vermelhas. É surreal: o martelar contínuo dos motores, o vozerio abafado dos homens e suas figuras recortadas em silhuetas, tornam tudo fantasmagórico pelos corredores avermelhados do navio. A lembrança de casa me excita a mente e fico imaginando minha família àquela hora.
E, em meio à tenebrosa escuridão da noite, a frota avança pelas águas perigosas e ameaçadoras do Atlântico Sul.
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